quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Sabedoria indigena brasileira

                  O Pajé e o Maracá - Felipe Néry (Óleo Sobre tela)

"Aqui no Brasil não acontece nada por os Guarani ainda estão segurando essa terra,
rezando, implorando a Ñanderu pra segurar de pé esse mundo. E Ñanderu não deixa
acontecer nada. Em outra parte da Terra está acontecendo muito castigo, de fogo
de enchente, de vento forte, não sei quanta coisa; por que isso? Porque lá não tem Guarani."
(Informante Guarani de  Garlet 1996).

Paz e Luz a todos
Fiquei um tempo sem postar, pois estava fazendo uma pequena pesquisa que ainda não dou por terminada acerca da religiosidade indigena. É impressionante a grandeza da espiritualidade dos indios que nós disperdisamos.
Na tenda que frequento antes de começar a gira sempre fazemos uma oração pedindo força e luz para trabalharmos e em dado momento o chefe da casa diz: "Dê a nós o merecimento da verdade..." buscamos sempre tal merecimento, porêm há uma coisa que não devemos fazer, é esperar a verdade "cair do céu". Com certeza nossos guiás nos ajudam e nos conduzem mais só naquilo que ainda não temos meios físicos para descobrir.
Ví a alguns dias atras um documentario da rede cultura sobre o Pajé Sapaim, Pajé que ficou famoso por percorrer o Brasil e o mundo curando doenças e algo me impressionou. O seu ritual de cura, através do charuto é praticamente identico ao utilizado pelos nossos caboclos na umbanda. É obvio, porque os médiuns estão incorporados por espiritos de indios (ou que trabalham com esse método), Porem será que todos os médiuns conhecem o processo que está por trás desse ritual?
Antes de começar gostaria de dizer que algumas partes do conteudo da pesquisa é antroposófica pois achei muito conveniente a coligação entre essa filosofia e o nosso conhecimento antropológico do comportamento indigena no que diz respeito a pajelança.

Cósmologia indigena e sua relação com a tradição esoterica
O alto do Xingú é uma comunidade indigena milenar que sempre se manteve em harmonia, até mesmo promovendo o comércio entre sí, todas as tribos dessa comunidade possuem sua organização diretamente ligada ao mundo dos espiritos e a sua cosmologia. Para os xingúanos Mavutsini é o  Deus criador de todas as coisas, é a força mais poderosa criadora do universo, da terra e das pessoas, "Ele tem um sol em seu peito, mas não é este sol do céu, é outro sol” – dizem. Mavutisni é imagem e semelhança do homem e criou a mulher a partir de um tronco de arvore "mawu" jogou nela determinadas ervas para encantala, depois passou as asas de um mosquito no seu nariz e assim ela espirrou e despertou, após isso seguindo o mito Tupi da criação,  Mavtsini (Monan para os Tupis) mandou que elas se casassem com a raça dos jaguares míticos –seres titânicos muito ferozes, seres do caos. Deste casamento das filhas de Monan com as onças é que descendem todos os homens e mulheres. Por isto temos uma essência divina, Ayvu, e Monan é nosso avô celeste e somos – como dizem os Araweté, “deuses esquecidos aqui na terra”. Por outro lado, todos nós temos “sangue de jaguar”, somos filhos da Onça Primordial, e por isto guardamos parentesco com toda a ferocidade predatória e canibal que a natureza apresenta.¹ Esse mito relembra o evangelho apócrifo de Enoch, e da teologia gnóstica.
Para os indios o corpo não é apenas formado por corpo fisico e espiritual mais pelo Corpo Fisico, um corpo "parecido com o fisico" que se desprende deste após a morte e assombra as pessoas próximo as suas tumbas, o corpo animal(anhangá) e o espirito (mamaé), tal divisão é semelhante a divisão usada nas escolas esotéricas como a Grande Fraternidade Branca e a Rosa Cruz.

                         Kuarup                            foto: Sandra Zaur

Kuarup
A maior festa entre os indios xingúanos é o Kuarup, que reune indios de todas as tribos da região para relembrarem os mortos, o dono do Kuarup deve antes de se iniciar a celebração sair para pescar e ao regressar deve deixar todos os peixes sobre aonde esta enterrado o corpo. Dai para frente os Pajés se reunem e preparam a tribo para a chegada dos espiritos. Transcrevo a narrativa de Agostinho sobre o mito que é lembrado na festa:

"Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.
Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.
Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.
Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.
Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. "Ninguém pode ver" - dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente.
Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.
Os cantadores - os cururus e as cutias - quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda.
Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera...espera...espera" - dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.
Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.
Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.
Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: - O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:
- Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora vai ser só festa.
Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. Tem que ficar assim mesmo, disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no Morená."

O Pajé e os mamaés
Uma das coisas que mais me chamou a atenção fora a explicação do Pajé Sapaim sobre os mamaés.
Mamaés são espiritos que podem tomar diferentes formas (onça, beija-flor, cobra, pessoas etc...), cada mamaé tem um determinado arquetipo que se relaciona diretamente com a saude dos vivos. Somente o Pajé vê os mamaés e se comunica com eles através do consumo do charuto. Fumando o seu espirito sai do corpo e ele vai conversar com os mamaés para resolver os problemas. Em alguns casos ele dorme e em sonho os mamaés vem se comunicar.
Para os xingúanos a duas formas de se tornar Pajé, o Pajé mais forte é aquele que é escolhido pelos mamaés em determinado momento da vida, outra forma é você aprender com um Pajé já feito. Em ambos os casos ao se tornar Pajé deve-se abdicar de todas as outras funções na tribo e se dedicar somente a pajelança.
O indio antes de se tornar Pajé passa por um tipo de despertar, uma experiencia de quase morte, onde ele vai ao mundo dos mamaés aprende a pajelança depois volta ao mundo dos vivos. Todo Pajé tem um "mamaé guíá"  é o mamaé que o acompanha desde que ele se torna pajé e o guía em todos os rituais.
O Pajé não é apenas um curandeiro é ele o responsavel pela vida espiritual da tribo, todos os problemas sejam fisicos (auxiliando o erveiro²), espirituais ou emocionais são tratados pelo Pajé que é como um médico, sacerdote e psicólogo.

Música e sua função
A musica indigena é um grande e complexo misterio, por vezes fala de saudade, por vezes de trabalho, algumas vezes não fala nada, são apenas murmurios que são ensinados pelos pajés que recebem a música em sonho. O pajé, como afirma o antroplógo e antropósofo Wesley Aragão de Moraes, copia a música de forma imperfeita como ouve no mundo dos espiritos. Copia tambem os instrumentos como lhe é mostrado pelos mamaés geralmente em sonhos. A música é parte importante no cotidiano indigena para todos os rituais e para "despertar" as ervas. Para os indios as músicas não são criadas por eles e sim ensinadas por forças divinas

Resumo
Como disse Allan Kardec em O livros dos espiritos, o espiritismo ainda esta evoluindo e para que tenhamos um conhecimento espirita pleno, devemos estudar todas as suas manifestações.
Na umbanda trabalhamos com o sincretismo e desde a umbanda tradicional trabalhamos com a pajelança porem as vezes esquecemos de nos aprofundar em algumas coisas. Relembro uma vez em que fui tomar um passe com um baiano e ele me falou: "Vocês tão começando a entender as coisas, tem muita coisa pra vocês entender ainda" devemos sempre nos aprofundar no conhecimento para isso a exemplo dos nossos irmãos do candomblé, devemos respeitar e aprender com nossos ancestrais.





 ¹  Wesley Aragão de Moraes - Medicina Indigena Brasileira: Comparação entre o saber dos Pajés e a medicina antroposófica
² Erveiro é um cargo secundario ao Pajé, responsavel pelo trabalho curativo das ervas.




Fontes Bibliográficas: 
Wesley Aragão de Moraes - Medicina Indigena Brasileira: Comparação entre o saber dos Pajés e a medicina antroposófica - 2009
Deise Lucy Oliveira Montardo - Através do Mbaraka: Música e Xamanismo Guarani (USP) - 2002
George de Cerqueira Leite - Kuarup - 2003


3 comentários:

  1. Oi...parabens seu blog realmente eh muito iluminado e atraves dele consigo sanar minhas duvidas so acho que deve atualizar com frequencia...vc realmente esta de parabens...

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  2. Adorei seu blog, é muito organizado, bem interessante, ótimo de se ler, muito informativo, resumindo È TUDO DE BOM!!! E o melhor tem um incrivel toque de amor, carinho e dedicação e o melhor seu incrível talento. Espero q vc se interesse por alguma das aldeias daki, pois seria muita honra pro meu Estado ter algo pintado, fotografado e postado por vc. Te desejo de todo meu S2 muito sucesso.

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  3. ...
    Dizer mais o que??? =) Excelente post, parabéns pela pesquisa. Foi muito esclarecedora. Só posso mesmo terminar dizendo:
    SALVE, GRANDE E ILUMINADO POVO DE ARUANDA!!!

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